A FACA E A SINFONIA
Eis que o reino criado
pelos deuses era sinônimo de contemplação e mistério.
As sementes germinavam na
mata virgem.
Os rios se deliciavam
montanha abaixo e, desviando de precipícios, formavam as mais ávidas correntezas.
Tudo estava pronto, mundo
feito, mundo perfeito.
Abaixo o tártaro, acima o
céu e mesmo o colapso das tempestades eram sinônimo de harmonia e perfeição.
Mas eis que uma centelha
divina infestou o coração de uma criatura ereta.
E esse portador da brasa
ardente da centelha divina
Sentiu seu coração pulsar
e não aceitou mais a dádiva numinosa e pôs-se frenético a atacar o todo.
Despedaçou o mistério;
sucumbiu a serenidade de dias até agora cintilantes de luminosidade.
E quando então suas mãos
já não bastavam para o ataque criou a faca,
criou a manualidade, criou a instrumentalidade, criou a técnica, criou a
destruição...
Faca de dois gumes, pontiaguda,
enferrujada, cheia de sangue...
Mas o mesmo portador da
centelha, vendo a barbárie nas entranhas do mundo e num gesto de arrependimento
e de pedido de perdão às divindades, criou a arte, o poema, a literatura, a
filosofia, criou música, criou dança, criou sinfonia... Sim! Tudo isso são
pedaços da transcendência inteira daquele que fora criado.
Transcendência? Sim! Só
há transcendência porque feito do húmus (humano) mais rico da terra, este precisa
devolver o que ora, por agressão, tomaste do mundo. Sem estes pedaços da
transcendência, estes feitos de húmus, jamais podem alcançá-la em plenitude.
Eis que surge então uma
batalha venenosa entre os líderes da técnica, os manipuladores de faca e
aqueles que criam sinfonias. Ó discurso infame quando atacam a arte! Ó
aberração impiedosa quando investem em parafusos e não constroem teatros! Ó
engenhosa maldade quando os números são mais importantes do que a partitura!
Eis a pergunta aos mais
poderosos deuses: Abençoai a faca e amaldiçoai a sinfonia ou abri a mente do
que fora criado para dizer que o mundo é sinfonia e que a faca é pura
destruição.
Eu? Eu fico com a
SINFONIA! Fico com a HARMONIA! Fico com a TRANSCENDÊNCIA...